terça-feira, 13 de maio de 2025

Carlos Drummond de Andrade

Caso pluvioso

Carlos Drummond de Andrade


A chuva me irritava. Até que um dia

descobri que Maria é que chovia.

A chuva era Maria. E cada pingo de

Maria ensopava o meu domingo.


E meus ossos molhando, me deixava

como terra que a chuva lavra e lava.

Eu era todo barro, sem verdura...

Maria, chuvosíssima criatura!


Ela chovia em mim, em cada gesto,

pensamento, desejo, sono, e o resto.

Era chuva fininha e chuva grossa,

matinal e noturna, ativa...Nossa!


Não me chovas, Maria, mais que o justo

chuvisco de um momento, apenas susto.

Não me inundes de teu líquido plasma,

não sejas tão aquático fantasma!


Eu lhe dizia em vão – pois que Maria

quanto mais eu rogava, mais chovia.

E chuveirando atroz em meu caminho,

o deixava banhado em triste vinho,


que não aquece, pois água de chuva

mosto é de cinza, não de boa uva.

Chuvadeira Maria, chuvadonha,

chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!


Eu lhe gritava: Para! e ela chovendo,

Poças d’água gelada ia tecendo.

E choveu tanto Maria em minha casa

que a correnteza forte criou asa


E um rio se formou, ou mar, não sei,

sei apenas que nele me afundei.

E quanto mais as ondas me levavam,

as fontes de Maria mais chuvavam,

de sorte que com pouco, e sem recurso,

as coisas se lançaram no seu curso,

e eis o mundo molhado e sovertido

sob aquele sinistro e atro chuvido.


Os seres mais estranhos se juntando

na mesma aquosa pasta iam clamando

contra essa chuva estúpida e mortal

catarata (jamais houve outra igual).


Anti-petendam cânticos se ouviram.

Que nada! As cordas d’água mais deliram,

e Maria, torneira desatada,

mais se dilata em sua chuvarada.


Os navios soçobram. Continentes

já submergem com todos os viventes,

e Maria chovendo. Eis que a essa altura,

delida e fluida a humana enfibratura,


e a terra não sofrendo tal chuvência,

comoveu-se a Divina Providência,

e Deus, piedoso e enérgico, bradou:

Não chove mais, Maria! – e ela parou.

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